A raposa e o lenhador

sobre fundo degradê azul, o título Vozes Inclusivas em branco e foto de Sylvia à direita

Era uma vez um lenhador que ficou viúvo com um bebê bem pequenino para criar. O lenhador criava uma raposa como animal de estimação, depois de tê-la salvado de caçadores. Ele confiava na raposa e a treinou para cuidar de seu bebê enquanto saía para trabalhar. Os vizinhos o criticavam, dizendo que a raposa era um animal traiçoeiro, indomesticável, um predador natural que atacaria o bebê na primeira oportunidade.

Um dia, ao chegar em casa, encontrou a raposa abanando o rabo no portão, como sempre, mas com a boca suja de sangue. Logo se lembrou do que falavam os vizinhos e acreditou que ela tivesse atacado seu bebê. Então usou seu machado para matar a raposa e correu para o quarto. Mas surpreendeu-se ao encontrar a criança dormindo calmamente no berço com uma cobra morta e ensanguentada no chão. O lenhador, então, entendeu que a raposa havia defendido o bebê, como fora treinada para fazer, atacando a cobra que o ameaçara. E enterrou a raposa amiga junto com seu machado.

Sim, é uma fábula contada e recontada muitas vezes (por isso com detalhes que mudam conforme a versão). Mas que sempre nos fará pensar: quem é, afinal, o lenhador? Quem é a raposa?

Contrariando o que dizia a “sabedoria popular”, apesar de seu instinto feroz, prevaleceu na raposa o amor por quem a cuidou. Mas, no lenhador, ecoava a voz de quem apresentava uma narrativa baseada em teorias, fatos, dados e percepções que agrupavam a raposa na caixa dos animais perigosos, rotulando-a como “feroz”, “incapaz de cuidar de um bebê” e “capaz de matar”.

A moral da história, que é atribuída a uma fábula de Esopo, fala de confiança - do quanto devemos valorizar nossos sentimentos por outras pessoas à despeito do que nos falam sobre elas, para que não nos deixemos influenciar ou não tomemos decisões precipitadas.

A reflexão que sugiro vai ainda mais longe inspirada por dois livros do professor e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman. No primeiro, “Rápido e devagar: duas formas de pensar”, ele nos explica sobre os chamados Sistemas 1 e 2 que operam, respectivamente, nosso pensamento rápido e devagar. Ao pensamento rápido são atribuídas as respostas automatizadas e quase involuntárias que não demandam esforço para se transformarem em ação ou reação. Já o pensamento lento requer uma elaboração de ideias, demanda atenção antes da tomada de decisão ou da ação. O outro livro é “Noise” (Ruído, numa tradução literal, ainda não traduzido para o português) e aqui ele nos convida a refletir sobre as muitas influências que impactam diretamente nossa capacidade de julgar as pessoas.

Fato é que nossas decisões e ações são sempre influenciadas por diferentes fontes que tendem a constituir as nossas verdades (dos “vizinhos” da fábula às teorias que conhecemos, passando pelas crenças em que escolhemos acreditar). Estas decisões se transformam em reações precipitadas sempre que for dominante o Sistema 1: nosso sistema de decisões rápidas, que toma atalhos para agilizar a tomada de decisão, baseando-se em associações previamente arquivadas e registradas em nosso cérebro como fontes seguras. Como na história, quando o lenhador tomou o atalho do viés de confirmação para associar a raposa com a boca ensanguentada à raposa assassina que os vizinhos descreviam. O Sistema 1 só não previu o que viria depois.

Sim, os vieses, assim como os gatilhos e as heurísticas são os chamados atalhos que tomamos para decidir prontamente sempre que necessário ou oportuno. É assim que ligamos nosso piloto automático para escovarmos os dentes, dirigirmos o carro ou julgarmos as pessoas. E nesse processo automatizado, eventualmente erramos. Dependendo do erro, logo percebemos e corrigimos: pegar o creme de barbear ao invés do creme dental dá um gosto ruim na boca, mas nada que algumas enxaguadas a mais não resolvam. Pegar o caminho de casa ao invés de ir para um compromisso pouco habitual pode nos atrasar em alguns minutos. Mas, quando erramos no julgamento de uma pessoa, nem sempre nos damos conta do mal que causamos porque, em geral, esse mal fica com ela.

Quando julgamos, sentenciamos a pessoa a ser quem atestamos que ela é. Já parou para pensar no quão limitadora é esta ação? No quanto nós restringimos os nossos próprios limites ao idealizar julgamentos e sentenças?

O professor Kahnemann pondera sobre nossa capacidade de julgamento já no subtítulo do livro, quando descreve ruído como uma “falha no julgamento humano” e ao longo do texto fala sobre os muitos ruídos que interferem em nossas decisões, impactando cada pessoa de maneira diferente e implicando em diferentes diagnósticos ou avaliações, sem que se perceba claramente um viés.

Os vieses cognitivos já foram catalogados em mais de 200 tipos e divididos em 4 categorias de acordo com os problemas que ajudam a resolver. “Todo viés cognitivo existe por uma razão - principalmente para economizar tempo ou energia de nosso cérebro. Se você olhar para eles pelo problema que estão tentando resolver, torna-se muito mais fácil entender por que existem, como são úteis e as compensações (e erros mentais resultantes) que apresentam.”

Juntemos agora esta frase de Buster Benson, responsável pela categorização dos vieses, com a lógica de Daniel Kahnemann e perceberemos que vieses e ruídos têm algo em comum além da capacidade de agilizar a tomada de decisão: o erro, uma margem de erro agravada pelo fato que impacta na outra pessoa, a quem julgamos – e nós, por vezes, nem nos damos conta disso, pois esse julgamento faz com que nos afastemos dessa pessoa, que não acreditemos nela, que a rotulemos como incompetente ou incapaz, que não queiramos escutá-la ou não tenhamos tempo para falar com ela, que guardemos dela uma desconfiança que se transformará num golpe mortal ao primeiro sinal que confirme a acusação guardada, como no caso da raposa.

Para minimizar esse erro, o que podemos fazer, enfim, já que somos humanos? Deixo aqui 3 dicas.

1. Tomar consciência de nossos vieses e buscar conhecer os ruídos que podem minar nossas relações. O processo de mudança é interior e depende apenas da nossa vontade.

2. Tolerar mais as diferenças – o que nos tira do prumo não é o problema, o problema é sair do prumo e a resposta está no primeiro item.

3. Aceitar o que não podemos mudar – especialmente nas outras pessoas. Diretamente relacionado ao item 2.

Somos seres gregários, gostamos e necessitamos (mais do que gostamos, em alguns casos) de estar com outras pessoas. O senso de pertencer é importante elemento de identidade e é essencial que tenhamos consciência que assim o é para todas as pessoas. E que favorecer a inclusão de todas as pessoas é essencial para o bem-estar coletivo.

Sylvia Terra é administradora com pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos, Gestão do Conhecimento e Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global. Tem 20 anos de atuação em Recursos Humanos e é cofundadora da FourAll e da Camargo Consultores Associados. É coach e embaixadora Ikigai e diretora adjunta do Camp Mangueira, onde atua no desenvolvimento de jovens aprendizes em condição de vulnerabilidade social.