A exclusão da pessoa enlutada

sobre fundo degradê verde, título Vozes Inclusivas em branco e foto de Samantha à direita

Em nossa sociedade ocidental, ainda há um tabu e uma dificuldade enorme em lidar com a morte e o luto. Cercado de superstições, evitamos falar sobre a morte e muitas vezes não sabemos o que falar para uma pessoa que acaba de perder um ente amado e acabamos optamos por dizer: “meus sentimentos” e prestar uma homenagem no velório e enterro.

Lembro de uma esposa enlutada que me disse que sentia que seus amigos e familiares buscavam proporcionar momentos alegres, mas que poucos se aproximavam e perguntavam sobre como ela estava ou se precisava de algo. Sua principal queixa era que gostaria de falar sobre seu marido com eles, sobre os momentos que viveram juntos, poder rir e chorar juntos. Ela comentava que quando tentava trazer alguma lembrança, o silêncio após sua fala sempre acabava sendo rompido por um “tapinha” no ombro acompanhado da fala “você precisa superar”. Mas ela sabia que no luto não há o que ser superado, e sim o que ser vivenciado!

Assim, como ela, muitas vezes escutei sobre o estigma do enlutado. Muitos trazem a sensação das pessoas desviarem deles na rua quando os viam e alguns, até mesmo, passaram por situações muito difíceis quando as mortes eram carregadas de julgamento social, ou pessoas que perderam seus entes por Covid.

Uma mãe me relatou de sua dor quando recebeu a notícia que seu filho havia sofrido um acidente de carro ao sair de uma festa de casamento. Mas o que trazia com maior sofrimento foi a dor dos comentários dos familiares sobre a possibilidade dele estar embriagado no momento do acidente. O sofrimento dela foi tamanho que, ao sair os resultados da autópsia que não havia resquício de álcool ou outras substâncias em seu filho, ela o postou em todas as suas redes sociais. Sentiu-se aliviada em sua raiva e revolta, mas a mágoa somada à dor da perda tornaram o seu processo de luto complicado e muito solitário.

Certa vez, escutei de um marido, que acabara de enterrar sua esposa que havia morrido por Covid, que havia sido impedido de entrar na vendinha de seu bairro por acharem que ele poderia estar contaminado e transmitir para outras pessoas. Esse jovem marido estava desconsolado. Não pôde se despedir da esposa, não pôde oferecer à sua esposa o enterro que gostaria, não pôde estar com seus familiares e, agora, estava “banido” de poder fazer compras em seu bairro! Sua dor não foi acolhida, foi evidenciada… Se sentia culpado por ter sobrevivido e ter tido sintomas leves antes mesmo do adoecimento de sua esposa. Estava sozinho em seu luto.

Há registros na história da humanidade sobre o receio de contaminação e a estigmatização de pessoas acometidas por doenças transmissíveis ou a familiares e amigos que tiveram contato com a pessoa que estava doente. Mas essas situações são danosas e agravam a exclusão e o sofrimento da população estigmatizada.

A pessoa enlutada perdeu suas referências e, dependendo da relação que tinha com a pessoa falecida, ela pode se encontrar frágil e com uma dor imensa. Pessoas enlutadas precisam ser acolhidas em sua dor: um abraço, uma oferta de ajuda para resolver questões burocrática, um estar por perto em silêncio. Precisam de apoio para vivenciarem seu luto em seu tempo e de sua maneira. O processo de luto não é uma doença e sim um processo que será vivenciado de forma única sempre que perdemos algo ou alguém que amávamos.

Vivemos em uma sociedade que evita a tristeza e que o chorar ainda não é visto como uma expressão natural dos nossos sentimentos e sim como um constrangimento que precisa ser evitado. Não há uma pessoa enlutada que não tenha uma história para contar de uma pessoa querida que lhe pediu pra não ficar chorando pela pessoa que morreu e para que evite ficar triste. Mas o luto é um processo em que as pessoas estarão tristes e saudosistas, relembrando dos momentos que viveu com seu ente querido, ou em outros momentos, estará retomando sua vida na ausência da pessoa amada. Esse processo é dinâmico e constante. Não há certo e errado. Não há tempo pré-definido para o luto. Há um processo que precisa ser vivenciado, ressignificado e integrado a presença da ausência na vida da pessoa enlutada.

Um dos pontos importantes relacionados ao luto é que não existe um tempo para se estar de luto. Cada pessoa viverá seu luto no seu tempo e de seu jeito. Muitos fatores influenciam esse processo, desde como se deu a morte, a personalidade do enlutado, as suas crenças e especialmente a qualidade da relação com a pessoa falecida.

Muitas pessoas relatam sobre não se sentirem compreendidas em seu processo de luto e pressionadas pelos familiares ou no trabalho. Pela CLT, as pessoas enlutadas têm 2 dias consecutivos de licença NOJO e logo estão sendo cobradas por produtividade. O próprio nome já nos remete ao tabu de nossa sociedade e a licença de 2 dias se aplica apenas para óbito de familiares diretos (pai, mãe, avós, filhos e netos).

Durante os primeiros seis meses da pandemia, um líder de equipe me procurou para que o ajudasse a abordar com sua equipe sobre morte e luto, visto que 70% de sua equipe havia perdido uma pessoa querida nos últimos meses. Espaços de conversa sobre as perdas foram implementados na rotina de trabalho, assim como atividades de meditação e arte. Atitudes inclusivas como a desse líder e de outras empresas que pude auxiliar durante a pandemia foram essenciais para que as pessoas pudessem se sentir cuidadas e respeitadas em seu processo de luto e retomada da vida.

Precisamos falar mais sobre o processo de vida e morte, compreender que são processos naturais e que, quanto mais pudermos olhar para a morte, mais buscaremos sentido em nossas vidas.

É fundamental que possamos lidar com o nosso medo pelo desconhecido, pela dor da perda ou pelas fantasias relacionadas ao processo de vida e morte, ou apenas, nos permitirmos entristecer e nos renovar individualmente e coletivamente.

Dra Samantha Mucci é Psicóloga, Professora de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria da EPM/UNIFESP, coordenadora do Programa de Acolhimento ao Luto (PROALU) CAISM/UNIFESP.


Referências:

FRANCO, M. H. O Luto no século XXI: Uma compreensão abrangente do fenômeno. São Paulo: Summus, 2021.

PARKES, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.

STROEBE, M. & SCHUT, H. The dual process model of coping with bereavement: rationale and description. Death Stud, v.23, n.3, p.197-224, 1999.

WORDEN, J. W. Aconselhamento do luto e terapia do luto: um manual para profissionais da saúde mental. São Paulo: Roca, 2013.