A importância do clichê para quem nunca o viveu
É muito comum ouvirmos de alguém que não gostou de determinado filme, série ou livro, justificar sua opinião com a frase: “Achei muito clichê’”.
E realmente, chega a ser cansativo ver tantas histórias batidas. Aquelas cenas já vistas ou lidas milhões de vezes, com personagens extremamente parecidos.
Isso acontece muito com as comédias românticas transmitidas na Sessão da Tarde, né?
Quem nunca viu um filme onde a protagonista é uma moça desastrada apaixonada por um galã, que jamais olharia para ela, mas que ao longo da história, será surpreendido pela força do amor, e com isso, a menina que não se cuidava, começará a se sentir mais bonita e os dois serão felizes?
Cenas de beijos apaixonados embaixo de uma chuva, com aquela trilha sonora romântica, já viu alguma? E aquela cena em que uma pessoa está dentro de um avião, indo para outra cidade ou país recomeçar sua vida e, do nada, o voo não decola porque o amado ou a amada correu e fez de tudo para dar tempo de dizer: “Por favor, não vá… Eu te amo!”?
Pois é, esses roteiros usam e abusam dos clichês. Pode ser porque nós já assistimos e lemos tantas histórias parecidas que, talvez, seja uma forma de nos conectarmos mais rápido com os personagens. Como essa situação já aconteceu várias vezes, é possível entender quem não curte muito um clichê!
Mas já parou para pensar na importância que o clichê tem para quem nunca o viveu?
Para o público que sempre se viu representado nas telas e nas páginas, realmente ver esse tipo de cena deve ser muito cansativo ao longo do tempo.
Porém, todos esses pequenos clichês foram vividos na maioria das vezes pelos mesmos padrões impostos pela sociedade: casais heterossexuais, brancos, cisgêneros, sem nenhuma deficiência.
Onde estão as pessoas que não se encaixam?
Em minha vivência como garoto gay, e extremamente afeminado, sentia desde cedo que era diferente. Além de levar bronca toda hora por conta da maneira que eu falava e me comunicava, não me reconhecer nos filmes e nos livros fortalecia a sensação de que havia algo errado comigo. Ir para a escola e conviver com o bullying era uma luta diária. Além dos colegas de classe, os professores também riam da minha cara, e não escondiam a sensação de desconforto quando eu precisava tirar alguma dúvida de uma matéria que eu não havia entendido muito bem.
Quando chegava em casa, assistia aos filmes da Disney e aquelas séries adolescentes que passavam à tarde na televisão. E eu amava demais aquele meu momento totalmente particular porque eu conseguia sair da realidade que eu vivia.
Porém, quando cresci, tomei consciência de milhões de estereótipos impregnados nas obras que eu amava. Exemplo: a donzela sempre em perigo sendo salva por um príncipe heterossexual “bem macho”, de pele branca, amado por todos, totalmente cortês, um símbolo de masculinidade aprovada.
Está bem. Confesso que eu amava, e de alguma forma me identificava em algum ponto. Quem sabe eu quisesse ser salvo de uma realidade frustrante e conseguir ser feliz para sempre com alguém que me entenderia? Pode ser que sim! Mas isto não tira o fato de que eu não me via ali, no horizonte das possibilidades que aquele personagem representava. Afinal, a figura masculina não tinha nada a ver comigo; por outro lado, a figura feminina me despertava mais empatia, porém não era o suficiente para que eu me identificasse totalmente com ela. E aproveito a reflexão para considerar que a mesma coisa acontecia com o público feminino, com mulheres que também não se sentiam representadas por aquela estrutura narrativa em que a donzela era sempre salva pelo “macho”.
Aos 25 anos, me descobri escritor e então, quando comecei, decidi fazer releituras de contos de fadas e histórias voltadas para o público adolescente com protagonistas LGBTQIA+, porque senti que precisava fazer essa ocupação.
Nós temos direito de viver nossos contos de fadas, e de viver nossas histórias “bobas” cheios de clichês adolescentes.
Eu quero ver casais LGBTQIA+ trocando um beijo apaixonado embaixo de uma chuva ou impedindo aviões de decolar para conseguir realizar uma declaração de amor que será aplaudida por todas as pessoas no final.
Quero ver um príncipe, salvando outro. Quero ver duas princesas subindo ao altar. Ou um príncipe trans sendo coroado por sua coragem. E que tal uma realeza com pessoas que nasceram com Síndrome de Down?
Sempre quando esse tipo de assunto é abordado voltado para pautas LGBTQIA+, os conservadores aparecem fervorosamente, dizendo que é uma forma de tentar corromper as crianças e os adolescentes, tornando-os gays ou trans.
Claro que irão pensar dessa forma, afinal, eles sempre foram representados. Mas será que não passa pela cabeça deles, que minha geração pertencente à comunidade LGBTQIA+ cresceu com as mesmas referências dos heterossexuais cisgêneros e isso não mudou quem realmente somos?
O preconceito fica totalmente estampado, e não vou mentir, às vezes lutar contra ele dá um cansaço enorme. Dizem que queremos “chocar” quando, na verdade, estamos vivendo nossa vida, como qualquer pessoa.
Espero que esta e a próxima geração tenham a oportunidade de sentirem-se incluídas, protagonizando histórias, desde os contos de fadas até as comédias românticas, para que sua existência seja normalizada, não apenas para o mundo, mas principalmente para elas mesmas.
Quando vemos a frase “representatividade importa”, é disso que estamos falando. É tão necessário que uma menina negra de 10 anos ligue a TV e encontre uma apresentadora como a Maju, do Jornal Hoje. Ela sentirá que é capaz, que pode chegar longe e que merece ser incluída.
Se os clichês das histórias fossem protagonizados por “minorias” desde cedo na mesma proporção que os perfis “padrões” desde o início, não seria necessário estar até hoje lutando por mais inclusão.
Por isso lhe digo, caro leitor ou leitora: talvez o clichê não seja tão banal para um grupo de pessoas que nunca o vivenciaram e que merecem sentir aquele sorriso bobo e o quentinho no coração. Afinal, todes são dignes e merecedores de viver o seu “felizes para sempre”.
Lino é escritor, produtor e Drag Queen. Seu trabalho consiste em criar releituras de histórias famosas e também de trazer Protagonistas inéditos para falar sobre diversidade. Lançou seu primeiro livro, “Transderella” em 2019 e os contos: “O Mais Esquisito da Turma” e “Rapunzel e a Síndrome de Down” no início desse ano.