Por detrás do "Novo Normal"?

arco azul do contorno da parte superior da Terra em meio ao escuro do universo e o Sol por detrás

Em meio à pandemia, uma nova expressão vem se espalhando de forma exponencial, contagiando mais e mais pessoas em todo o Brasil. Estou me referindo ao termo “novo normal”. E este fenômeno me estimulou a escrever este texto.

Para quem trabalha com comunicação inclusiva, a compreensão das etimologias e dos diversos significados das palavras é o ponto essencial para que entendamos seu impacto quando do seu emprego, seja na linguagem falada ou escrita. E, sinceramente, não é de hoje, que me sinto intrigado com a palavra “normal”. Sempre me incomodou o seu emprego atrelado ao universo do “humano”, seja de forma indireta ou direta. Isto porque a palavra normal historicamente foi muito utilizada por pessoas ou grupos de pessoas que se viam como superiores e subjugavam as demais. Quem “não era normal”, era descartado, isolado ou ignorado. O resultado desta repetição ao longo de séculos e séculos fez com que a própria palavra criasse uma atmosfera um tanto negativa e segregadora. Exemplo disso foi o movimento da normalização, que apareceu na década de 50 nos nos países escandinavos, influenciando e muito os avanços dos processos educativo inclusivos da sociedade. Originariamente, o princípio da normalização procurava oferecer às pessoas com deficiência condições de vida semelhantes às demais. A normalização se referia às adaptações no ambiente no qual viviam as pessoas com deficiência e não à normalização das pessoas com deficiência. Infelizmente, este detalhe crucial no entendimento da filosofia da normalização passou despercebido em muitos e muitos casos. Não raramente, praticou-se a normificação em vez da normalização, que é justamente um encorajamento para que pessoas com deficiência “se passassem por normais”, escondendo da sociedade suas condições particulares do ponto de vista sensorial ou cognitivo. O que quero dizer é que, sob a ótica de quem tem deficiência ou trabalha com o tema, a prática da normificação impregnou a palavra “normal” de atributos negativos.

Entendo quando as pessoas falam que querem que tudo volte ao normal, que querem ser normais de novo. Entendo que o sentido é o de “voltar à rotina”, de “se ter de volta uma zona segura e conhecida”. Entendo mesmo. O que estou propondo aqui é que usemos outros termos para dar o mesmo sentido, por acreditar que a palavra “normal” e a expressão “novo normal” podem remeter a aspectos não muito positivos da nossa história, principalmente quando olhamos para diversidade.

Para uma quantidade de pessoas talvez o que eu esteja querendo defender aqui não faça o menor sentido. Mas, se você leu este texto até aqui, significa que em algo concordamos, certo?

O ponto central da comunicação inclusiva é evitar ou eliminar barreiras entre quem se comunica e quem recebe a mensagem. E eu acredito que o uso dos termos “normal” e “novo normal”, por mais que não exista a intenção de magoar alguém por parte de quem os utiliza, pode ferir ou trazer à tona sentimentos não muito legais.

Falar em “pessoas normais” pode reforçar a ideia antiga de objetificar aqueles que fazem parte de uma diversidade humana, que possuem suas singularidades.

Olhemos para a etimologia da palavra. “Normal” vem do latim normalis, que significa “de acordo com a regra”. É como se o ser humano tido como normal fosse um produto que sai ao final de uma linha de montagem. Sabe aquela cena dantesca no clipe “The Wall”, da banda inglesa Pink Floyd, em que crianças uniformizadas, zombificadas e com rostos todos iguais entram em uma máquina? Então, é esta cena que me vem à mente quando fala-se em “pessoas normais”. Mas esta é uma opinião muito particular.

Não podemos deixar de mencionar o uso do termo normal para se referir à distribuição normal ou gaussiana, representada por uma curva em forma de sino, que procura mostrar, de forma gráfica, um conjunto de pontos tidos como iguais e que, por conseguinte, podem ser agrupados indiscriminadamente sem que suas diferenças sejam levadas em consideração. Estar dentro da normalidade é estar sob a cúpula do sino. Um outro conceito atrelado à definição de curva normal é o de ponto “fora da curva”, chamado de outlier (lê-se “autilaiar”). Em estatística, outlier significa “valor aberrante” ou “valor atípico”. São aqueles fenômenos que apresentam um grande afastamento dos demais, por conta de suas diferenças.

Você consegue ver semelhanças entre “pontos atípicos, à margem na normalidade” com o que temos hoje sendo discutido nas pautas de direitos humanos e de diversidade?

Um dos significados possíveis em se falar em voltar ao normal, portanto, é clamar pela volta de um modelo de convívio em sociedade que favorece ainda mais os já favorecidos e que minoriza ainda mais os minorizados. E este modelo matemático não nos serve!

Este é grande recado que essa pandemia tem para nos trazer! É hora de reconstruir um novo mundo. Um mundo pautado na diversidade e no respeito às inúmeras diferenças que carregamos em nossa jornada terrena, estejam elas marcadas em nossos corpos (raça, gênero, deficiência) ou em nossas mentes (culturas, religião, orientação sexual).

Finalizo este artigo fazendo um pedido: não usemos “novo normal”. Falemos de “novo mundo”, de “nova vida”, “nova rotina” ou qualquer coisa nesta direção. O sentido é o mesmo e evitamos que possam afetaar negativamente alguém.

As palavras têm poder e elas podem mudar a forma como enxergamos uns aos outros. E mudando a forma como comunicamos, mudamos o nosso olhar em relação à diversidade, a quem nos é diferente. Jogue fora o “normal” e fique só com o “novo”!